O Ministério da Fazenda discute prever em sua proposta de novo arcabouço fiscal uma ligação entre o crescimento dos gastos federais e a tendência projetada para variáveis econômicas dentro de um horizonte de médio prazo.
Um dos pontos em debate é a possibilidade de algumas políticas públicas terem suas despesas atreladas a indicadores per capita. Outra alternativa seria criar uma meta de gasto por beneficiário atendido por esses programas.
Se esses gastos crescerem em linha com o avanço do PIB (Produto Interno Bruto) per capita, por exemplo, a lógica da evolução das despesas do governo como um todo muda.
Essas são apenas opções aventadas no debate que está sendo conduzido sob grande reserva dentro da Fazenda. Ainda não há qualquer decisão sobre como ficará o desenho final, que pode sofrer mudanças e precisará depois ser validado pelo Palácio do Planalto.
Na semana passada, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), anunciou a intenção de antecipar a proposta de novo arcabouço fiscal, que agora deve ser apresentada em março. Antes, a previsão era anunciar o projeto no mês de abril.
A sinalização veio em meio ao fogo cruzado enfrentado pela equipe econômica, diante dos embates entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o Banco Central em torno da taxa de juros e da definição da meta de inflação.
A nova regra é uma das apostas da equipe de Haddad para melhorar as expectativas dos agentes em relação à sustentabilidade das contas do país e transmitir confiança sobre a determinação do governo em perseguir esse objetivo.
Uma das premissas já verbalizadas por integrantes da equipe econômica é a intenção de ter algum limite de despesas, mais flexível do que o atual teto de gastos —considerado rígido demais e ineficiente pelo time de Haddad.
O diagnóstico é que, para atingir seus objetivos de médio prazo e manter a dívida em trajetória saudável, o mais simples para o governo é controlar a velocidade de crescimento do gasto público.
Outro princípio colocado pelos técnicos é que o arcabouço traga uma visão de médio prazo, não só para estar em sintonia com a tendência internacional no tema, mas também para criar um horizonte mais estável para as políticas públicas.
O atual teto de gastos é corrigido pela inflação do ano anterior. Como algumas despesas crescem acima desse índice, outros gastos foram sendo achatados ao longo dos anos, entre eles os investimentos e algumas ações na área social.
O novo governo quer evitar isso autorizando um crescimento das despesas acima da inflação. A questão-chave é qual ou quais indicadores usar no desenho a ser proposto.
Ainda na campanha, o time de Lula chegou a discutir a possibilidade de usar o crescimento do PIB como referência. Agora, com o aprofundamento dos debates, a avaliação é de que isso tornaria a regra menos restritiva do que o necessário para retomar o superávit e recolocar a dívida em trajetória de queda.
Como a população brasileira aumenta ano a ano, a riqueza gerada do país é dividida entre um número maior de pessoas. Por isso, é natural que o PIB per capita tenha uma taxa de crescimento levemente abaixo da observada no PIB agregado.
Essa seria uma forma de fazer com que as despesas tenham um aumento real (acima da inflação), mas em ritmo mais moderado do que o avanço das receitas —combinação considerada crucial para obter uma redução gradual do déficit público.
Algumas simulações foram realizadas com esses parâmetros, mas ainda não houve decisão. Uma das dúvidas a serem levadas em consideração é se o arranjo é suficiente para cumprir o objetivo almejado de exibir uma trajetória sustentável da dívida.
Durante a transição de governo, o grupo técnico de Economia já havia discutido a possibilidade de atrelar despesas a indicadores per capita ou de número de usuários das políticas. O time era formado pelos economistas Nelson Barbosa (ex-ministro do Planejamento), Pérsio Arida (ex-presidente do BC), André Lara Resende (ex-presidente do BNDES) e Guilherme Mello (atual secretário de Política Econômica).
O relatório final do grupo, que não é público, foi obtido pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação. O texto diz que o plano fiscal de longo prazo “deve rever os atuais pisos de gasto primário, vinculações de receitas e indexação de despesas, procurando estabelecer metas de gasto real per capita ou por beneficiário de programas ou políticas públicas, onde isto for adequado, de modo a diminuir a rigidez do Orçamento federal”.
O trecho consta na parte final do documento “Anexo I – Sugestão de reforma do regime fiscal”, que tem três páginas e foi entregue a Haddad para eventual consideração nas futuras discussões da pasta.
A Constituição prevê pisos de gastos para saúde e educação, embora as áreas não sejam citadas diretamente no relatório. Até a criação do teto de gastos, os mínimos eram o equivalente a um percentual da receita da União. A regra fiscal manteve essa lógica em 2017, mas determinou que o valor nominal fosse apenas corrigido pela inflação a partir de 2018.
Outras despesas são indexadas a índices de preços e têm correção automática, como benefícios previdenciários e parte dos repasses assistenciais.
A sugestão do grupo de transição foi criar metas de gasto real per capita, ou por beneficiário, mas o texto não detalha para quais áreas. Como princípio, esse desenho é visto hoje por integrantes do governo como uma maneira mais inteligente de dimensionar a política pública, em vez de simplesmente fixar um percentual da arrecadação ou do PIB.
O relatório do grupo da transição também sugeria uma meta específica para gastos com pessoal, definida com base em um plano plurianual de carreiras, concursos e reajustes salariais.
O documento ainda recomendava que o projeto de lei complementar a ser enviado pelo governo traga em seu texto os princípios do arcabouço fiscal, mas sem fixação de metas numéricas, que seriam estipuladas no âmbito do PPA (Plano Plurianual), apresentado no primeiro ano de cada mandato, com possibilidade de revisão anual.
A preferência por um horizonte de médio prazo na formulação do arcabouço fiscal também torna necessária, na avaliação de técnicos do governo, o uso de projeções para indicadores como inflação e PIB —e não indicadores já medidos e sobre os quais não há controvérsia.
A preocupação, dentro e fora do governo, é com a discricionariedade envolvida: em tese, estimativas podem ser mudadas conforme a ocasião. No passado, quando a principal regra fiscal era o superávit primário, era comum governo e Congresso inflarem as projeções de receita para poderem turbinar gastos sem rever a meta.
Nos bastidores, técnicos reconhecem que o caminho escolhido torna necessário buscar credibilidade e solidez nas projeções usadas no arcabouço. Por outro lado, um técnico pontua que as projeções não são infalíveis, mesmo as do mercado, e por isso é preciso discutir a possibilidade de mecanismos de correção nas despesas, caso o cenário traçado não se realize.
Há uma avaliação também de que limites rígidos, como o teto de gastos, são difíceis de serem cumpridos e, por isso, acabam incentivando o contorno. No governo de Jair Bolsonaro (PL), ao menos cinco emendas constitucionais foram aprovadas para driblar o limite de despesas.
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